Lisboa ainda dormia quando a notícia começou a espalhar-se como um sussurro triste pelos cafés, pelas rádios e pelas redes sociais. Era madrugada de 5 de janeiro de 2014, um domingo frio, e Portugal acordava para uma notícia que parecia impossível de aceitar: Eusébio da Silva Ferreira tinha morrido. O “Pantera Negra”, o homem que levou o nome do Benfica e de Portugal para o mundo, tinha partido — e com ele, parte da alma do futebol português.
Passaram-se dez anos desde então, e o eco dessa madrugada ainda ressoa entre os adeptos. Eusébio não foi apenas um jogador — foi um símbolo de uma geração inteira, o reflexo da esperança de um país que se reconhecia nos seus dribles, na sua força e na forma como sorria depois de cada golo. No entanto, por trás da glória e das homenagens, existe uma história mais silenciosa, uma narrativa de fragilidade humana que poucos conhecem e que continua envolta em mistério e emoção.
Naquela última noite, Eusébio encontrava-se em casa, num apartamento discreto em Lisboa. Nos meses anteriores, tinha lutado contra vários problemas de saúde. O coração, que tantas vezes acelerou estádios inteiros, começava a fraquejar. As viagens constantes, as homenagens, os convites de todo o mundo — tudo isso o cansava, mas ele nunca soube dizer “não”. Era impossível recusar o carinho das pessoas, o reconhecimento que sempre o acompanhou desde os tempos em que vestia o manto encarnado.
Os médicos tinham sido claros: era hora de descansar. Mas Eusébio nunca foi homem de parar. O corpo podia dar sinais de fraqueza, mas o espírito permanecia inquieto, como se ainda houvesse um jogo por jogar, um golo por marcar, um estádio por emocionar.
Naquela noite, por volta da meia-noite, a família notou que algo não estava bem. O semblante tranquilo deu lugar a uma expressão de desconforto. Chamaram ajuda, mas tudo aconteceu rápido demais. Às 4h30 da madrugada, os paramédicos confirmaram o que ninguém queria ouvir: Eusébio tinha sofrido uma paragem cardiorrespiratória.
Foi o fim físico de um homem, mas o início de uma eternidade simbólica. O país inteiro mergulhou em luto. As bandeiras desceram a meio mastro, as televisões interromperam a programação, e o Estádio da Luz transformou-se num altar de flores, velas e lágrimas. Milhares de pessoas, de todas as idades, alinharam-se em silêncio para prestar a última homenagem ao ídolo que os ensinou a sonhar.
Mas o que realmente levou Eusébio ao limite? Alguns médicos próximos afirmaram que o seu coração não resistiu às complicações de longa data — diabetes, hipertensão, e o desgaste natural de uma vida vivida com intensidade. Outros, mais íntimos, dizem que a verdadeira causa estava além da biologia: a solidão. Eusébio, apesar de amado por milhões, sentia-se cada vez mais afastado do palco que o tornou imortal.
Nos últimos anos de vida, falava com nostalgia dos tempos em que o futebol era puro, em que o aplauso vinha do coração e não das redes sociais. Dizia, em tom sereno, que “a bola já não corre como antes”, como se, de algum modo, o jogo o tivesse ultrapassado. Esse sentimento de distanciamento cresceu, e o homem que um dia foi o centro do mundo futebolístico passou a observar de longe, entre memórias e silêncios.
Amigos próximos recordam que, nas semanas antes de morrer, Eusébio parecia inquieto. Passava horas a rever vídeos antigos, principalmente o Mundial de 1966 — aquele em que Portugal ficou em terceiro lugar e ele brilhou como o melhor marcador do torneio. Nesses momentos, sorria. Dizia: “Aquele era o meu tempo. Aquilo era o Benfica, aquilo era Portugal.”
Há quem diga que Eusébio sentia falta da simplicidade de antes, quando o futebol era paixão e não negócio. Talvez fosse esse o verdadeiro peso que carregava no coração: ver o desporto que amava transformar-se em algo distante da sua essência.
Quando a notícia da sua morte se confirmou, o mundo parou. Pelé escreveu: “Perdi um irmão.” A FIFA declarou luto oficial, e até clubes rivais renderam-se à grandeza de quem, mesmo vestindo o vermelho do Benfica, pertencia a todos. Em Moçambique, onde nasceu, multidões encheram as ruas para celebrar a vida do homem que levou o nome da sua terra a cada estádio que pisou.
Nos dias seguintes, Lisboa tornou-se palco de uma despedida épica. O cortejo fúnebre percorreu as avenidas da cidade, e quando o caixão entrou no Estádio da Luz, o silêncio foi absoluto. Apenas o som de aplausos se misturava às lágrimas. A cada batida de palmas, parecia que o coração do velho estádio pulsava junto. Eusébio, o eterno número 13, estava de volta a casa.
Dez anos depois, os Benfiquistas ainda se lembram daquele dia como se tivesse sido ontem. O busto dourado à entrada do estádio brilha mais em dias de sol, e muitos garantem que é como se ele ainda estivesse ali, observando os jogos, pronto para levantar-se a cada golo do Benfica.
A pergunta que fica é: o que realmente ficou por dizer? O que restava no coração de Eusébio antes da última madrugada? Há quem afirme que ele pressentia o fim. Certa vez, confidenciou a um amigo: “Se eu partir, quero partir como vivi — com o Benfica no coração.”
E foi assim. Sem escândalos, sem despedidas longas, apenas a certeza de uma vida cumprida. O seu legado permanece em cada criança que veste a camisola encarnada e sonha em ser como ele. Nas ruas, o nome “Eusébio” continua a ser pronunciado com reverência, como se fosse sinónimo de honra, talento e humildade.
No entanto, há uma estranha sensação de vazio que persiste. Talvez porque Eusébio representava mais do que um jogador — representava o tempo em que o futebol era sentimento puro, e não espetáculo global. Ele era a ligação entre o passado e o presente, entre o sonho e a realidade.
Hoje, quando o Benfica entra em campo e a bola rola, muitos dizem que ainda ouvem o eco dos seus passos, que ainda sentem o olhar dele nas bancadas. “O Eusébio nunca morreu”, dizem os mais velhos. “Ele apenas foi jogar noutro campo.”
Dez anos após a sua morte, há uma certeza que ninguém contesta: Eusébio não pertence apenas à história — pertence à eternidade. O seu nome continuará a ser sussurrado em cada golo, em cada vitória e até nas derrotas, porque a alma do Benfica, em grande parte, continua a bater ao ritmo do coração que um dia foi dele.
E talvez seja esse o verdadeiro mistério das suas últimas horas. O corpo pode ter cedido, mas o espírito, esse, nunca descansou. Eusébio continua presente — nas bandeiras que tremulam, nas memórias que se recusam a apagar-se, nas lágrimas discretas de quem o viu jogar.
O tempo passou, os estádios mudaram, os nomes também. Mas quando o árbitro apita e o jogo começa, há sempre um momento em que todos olham para o relvado e imaginam a silhueta elegante de um homem de camisola vermelha, a correr como se o mundo dependesse daquele lance. Nesse instante, por
breves segundos, Eusébio volta a viver.
